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PESQUISA EM PAÃSES EM DESEVOLVIMENTO
08/06/2007 - Le Monde Diplomatique
Retratos de um apartheid médico
INDÃSTRIA FARMACÃUTICA
Retratos de um "apartheid" médico
Para acelerar a liberação de drogas ultra-lucrativas, as corporações farmacêuticas recorrem cada vez mais a cobaias humanas dos paÃses pobres. Milhões de pessoas submtem-se, por migalhas, a testes sem supervisão, sem padrões éticos e que muitas vezes as privam de medicamentos essenciais.
Sonia Shah
A indústria multinacional farmacêutica gasta quase 40 bilhões de dólares por ano para desenvolver novos medicamentos. Para isso, mobiliza uma crescente parcela dos cientistas mais experientes do mundo e a mais sofisticada tecnologia médica.
Com tal investimento maciço poderia se esperar um aumento do número de medicamentos de impacto dirigidos para os flagelados da humanidade. No entanto, esse ano, só a malária atingirá 500 milhões de pessoas no mundo, e matará cerca de três milhões. Os remédios mais modernos de que os médicos dispõem para tratá-los são anti-diluvianos: um medicamento chinês de mil anos, que substitui uma droga desenvolvida há mais de 50 anos.
A indústria famacêutica não desprezou as partes do mundo assoladas por doenças como a malária. Pelo contrário: nunca antes os fabricantes de remédios deram tanta atenção aos pobres do mundo. Os grandes laboratórios estão realizando milhares de ensaios clÃnicos nos paÃses em desenvolvimento - Bulgária, Zâmbia, Brasil e Ãndia, por exemplo. Aninhado contra as favelas enegrecidas de fuligem em Mumbai ergue-se o reluzente prédio branco da Novartis, onde os pesquisadores franzem as sobrancelhas na busca de novas drogas. Ao redor das que se espalham cercando a Cidade do Cabo, ficam os cintilantes laboratórios de teste da Boehringer Ingelheim. Recentemente, a Pfizer, a Glaxosmithline (GSK) e a Astrazeneca instalaram centros globais de testes clÃnicos na Ãndia. Ano passado, a GSK realizou mais da metade dos seus testes de drogas novas fora dos mercados ocidentais, escolhendo em particular paÃses de "baixo custo" para os testes "deslocalizados"
As empresas não estão lá para curar os males dos doentes pobres que fazem fila em suas reluzentes clÃnicas de pesquisa. Os fabricantes de drogas foram aos paÃses em desenvolvimento para fazer experimentos com as multidões de doentes miseráveis. Utilizam-se deles para produzir os remédios destinados à s pessoas cada vez mais saudáveis em outros lugares, em particular ocidentais ricos que sofrem os desgastes da idade, como doenças cardÃacas, artrite, hipertensão e osteoporose. Essa tendência - desenvolver drogas para os ricos globais testando-as nos pobres globais - além de não ser um investimento de recursos cientÃficos preciosos, ameaça os direitos humanos e a saúde pública global.
Num mercado de bilhões, 100 mil "voluntários" para cada droga
Os Estados Unidos são o maior mercado de remédios do mundo. O norte-americano médio leva para casa dez receitas médicas por ano. Desde 2000, a indústria farmacêutica cresceu 15% por ano, triplicando o lançamento de drogas experimentais entre 1970 e 1990. Isto se deve, em grande parte, a mudanças nos regulamentos dos EUA sobre remédios. Em 1984, a agência norte-americana de medicamentos e alimentação (Food and Drug Administration, FDA) estendeu as patentes dos fabricantes para novas drogas; em 1992, começou a aceitar pagamentos de fabricantes em troca do exame e liberação mais rápida de suas drogas novas e, em 1997, suprimiu as regras que baniam anúncios de televisão para os remédios novos. Essa mudança bastou para trazer uma grande transformação na indústria. Pela primeira vez, permitiu-se aos fabricantes de remédios dirigir as propagandas mais atraentes dos remédios novos diretamente a um grande número de consumidores, sem a mediação cética de um médico.
Há muito dinheiro a ganhar vendendo remédios para norte-americanos: a indústria de medicamentos é uma das mais lucrativas do mundo. O problema é que quanto mais apreciam remédios, menos pessoas estão dispostas a se inscrever nos testes clÃnicos exigidos para desenvolver os novos. Cada droga nova exige cerca de quatro mil voluntários para os testes clÃnicos, o que por sua vez significa que 100 mil pessoas têm de ser atraÃdas para os ensaios iniciais. Por que tantos? Porque não é fácil desenvolver novos remédios para doenças do coração, artrite, hipertensão e outras condições crônicas não contagiosas.
Apesar do máximo esforço da indústria, a maioria das novas drogas destinadas a tratar dessas doenças tem eficácia apenas marginal. Algumas são similares a uma pÃlula de placebo. "Você sempre tem que batalhar para encontrar uma diferença" entre os pacientes tratados e não-tratados, diz um pesquisador clÃnico veterano. Não é preciso testar muitos pacientes para provar a eficácia, por exemplo, da insulina para pessoas em coma diabético, porque o efeito da droga é muito visÃvel. Mas provar que drogas de baixa ação, como antialérgicos, medicamentos para o coração ou pÃlulas antiinflamatórias têm uma eficácia real exige um grande número de pessoas testadas.
A necessidade da indústria encontrar voluntários para experimentos é imensa. Entretanto, pouco mais de um em vinte norte-americanos estão dispostos a participar de testes clÃnicos. A razão é óbvia. Por que se expor a compostos experimentais, não testados, quando o leque de alternativas comprovadas está ao alcance das mãos?
Quanto mais doenças e "eventos", mais fáceis e rápidos os testes
Para resolver o problema, os fabricantes das drogas fazem testes para comparar o efeito dos seus remédios novos com o de um placebo. Basta provar à FDA que um medicamento novo funciona melhor do que nenhum. à um padrão simples que dá um resultado mais claro em menos tempo. O único problema com os testes de placebo é que exigem um número suficiente de pessoas que queiram participar de um experimento em que podem não receber tratamento algum - uma tarefa cada vez mais impossÃvel, especialmente no Ocidente mergulhado em remédios.
Como resultado, 80% dos testes clÃnicos da indústria farmacêutica falham em cumprir os prazos de recrutamento. Para cada dia de atraso no desenvolvimento de uma droga, as companhias perdem cerca de um milhão de dólares em vendas, enquanto seus concorrentes ganham mercado.
Se as pessoas nos paÃses em desenvolvimento estivessem sofrendo apenas de malária e doença do sono, é claro que não interessaria fazer testes nesses lugares. Mesmo que cada doente de malária tivesse um dólar para gastar com remédios - o que não acontece - esse mercado não seria grande o bastante para deslocar pesquisadores da indústria para laboratórios. Um mercado de 200 milhões de dólares, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), é o mÃnimo necessário para despertar o interesse da indústria.
Não importa. Atualmente, além de malária e tuberculose, as pessoas dos paÃses em desenvolvimento sofrem das doenças nas quais os fabricantes de drogas dos mercados ocidentais estão mais interessados. De acordo com a OMS, 80% das mortes por doenças crônicas não contagiosas, como males cardÃacos e diabetes, agora ocorrem nos paÃses em desenvolvimento. Há mais diabetes tipo II na Ãndia do que em qualquer outro lugar do mundo. Em alguns lugares da Ãfrica, uma em cada cinco pessoas sofre de diabetes e 20 milhões de africanos padecem de hipertensão.
Ãfrica do Sul: "um paÃs ótimo para a AIDS"...
De acordo com a OMS, as implicações desse fenômeno para a saúde pública "são inquietantes e já estão aparecendo". Por serem pobres e sofrerem incômodos de saúde mais prementes, poucos pacientes são tratados. Inevitavelmente, sofrem mais complicações do que os pacientes bem tratados do Ocidente. Isto oferece uma oportunidade para os testes industriais. Para provar que um remédio para o coração funciona, por exemplo, é preciso mostrar que quem não toma esse remédio sofre mais "eventos" - sejam ataques cardÃacos ou mortes - do que quem toma o remédio. Os testes nos paÃses pobres podem completar-se muito mais depressa. Como observou um executivo de uma companhia de testes clÃnicos, durante uma conferência sobre a adequação dos paÃses pobres para testes clÃnicos: "se não houver eventos suficientes, você nunca vai terminar seu teste".
Outro executivo de companhia de testes clÃnicos afirmou: "A Ãfrica do Sul é um paÃs ótimo [para AIDS]", por causa do grande número de pacientes infectados pelo HIV ainda não tratados com drogas anti-virais. Com freqüência os fabricantes de drogas ficam frustrados em suas tentativas de provar que as novas drogas funcionam nos corpos impregnados de medicamentos dos ocidentais testados. Há tantas drogas em seus organismos que é cada vez mais difÃcil observar o efeito do composto experimental. Assim, os pacientes-virgens - pessoas doentes pobres demais para obter tratamento médico - são altamente valorizados nos testes clÃnicos.
Mas o grande atrativo para a localização dos testes em paÃses mais pobres é a rapidez. Na indústria farmacêutica de hoje, onde os fabricantes de remédios manobram para ser os primeiros do mercado com a última insulina aspirada ou o novÃssimo anti-depressivo, a velocidade é essencial. Nos paÃses ocidentais, recrutar um número suficiente de voluntários para testes pode levar meses e até anos. Nos paÃses em desenvolvimento, o recrutamento é rápido. Na Ãfrica do Sul, a Quintiles alistou três mil pacientes para testar uma vacina experimental em nove dias. Em doze dias, recrutou 1.388 crianças para outro teste. Além do mais, no Ocidente, de 40 a 60% dos inscritos são instáveis e acabam largando os testes clÃnicos, incomodados por efeitos colaterais desagradáveis ou pelo inconveniente de se deslocar até a clÃnica. Em lugares como a Ãndia, as companhias de testes clÃnicos dizem que conservam 99,5% dos voluntários inscritos.
Não é fácil para os fabricantes de drogas ocidentais levarem seu negócio de testes clÃnicos para os paÃses pobres. Muitas vezes, eles precisam traduzir documentos, equipar clÃnicas e hospitais sem recursos, treinar os médicos locais e lidar com uma burocracia estrangeira e freqüentemente corrupta. Mas, apesar desses desafios, para a maior parte dos grandes fabricantes de drogas, realizar os experimentos em paÃses em desenvolvimento tornou-se uma necessidade. Empresas que oferecem consultoria sobre como realizar testes nesses paÃses floresceram, tornando-se uma indústria secundária.
Grandes empresas de testes multiplicam filiais no Sul do planeta
As companhias de testes clÃnicos (também chamadas organizações de contratos de pesquisa, ou CROs) como a Quintiles e a Covance ostentam escritórios e consultórios por toda parte dos paÃses em desenvolvimento. A Quintiles tem clÃnicas no Chile, México, Brasil, Bulgária, Estônia, Romênia, Croácia, Letônia, Ãfrica do Sul, Ãndia, Malásia, Filipinas e Tailândia. A Covance alardeia que pode fazer testes em 25 mil centros médicos, em uma dezena de paÃses. A imprensa comercial da indústria dos testes clÃnicos exalta-se com entusiásticos artigos como "Sucesso com testes na Polônia" e "Oportunidades de um bilhão de dólares em pesquisa clÃnica na Ãndia". "Descubra a Rússia", diz uma manchete de uma revista de propaganda, que lembra estranhamente a exuberância de um guia turÃstico, "para fazer pesquisa clÃnica". "Vá esquiar onde existe neve", recomenda outro anúncio de uma companhia que vende serviços de testes clÃnicos em paÃses pobres. "E vá fazer testes clÃnicos onde existem doentes".
E então, qual é o problema? Os testes clÃnicos oferecem por toda a parte melhor tratamento do que as clÃnicas regulares, que fazem os pacientes esperar o dia inteiro em seus consultórios quase vazios. Os pacientes pobres poderiam considerar-se com sorte por participar de testes clÃnicos - e a alegria com que eles acorrem sugere que sabem disso. Ainda por cima, as clÃnicas e hospitais nos paÃses pobres têm acesso a tecnologia avançada e freqüentemente capitalizam-se com o novo equipamento que os fabricantes de drogas trazem para que realizem os testes. "Recebemos alguns equipamentos", lembra um pesquisador clÃnico da Ãndia, "e eles não os pediram de volta".
Ser uma cobaia humana pode ser um papel que os ocidentais não querem mais fazer, mas isso não quer dizer que não é um bom negócio para os pobres. Por que não mandar os testes para lá, do mesmo jeito que mandamos as fábricas tóxicas e as sweatshops? [6] à melhor do que nada. "Disseram [que eu] estava levando vantagem!", queixou-se um pesquisador industrial criticado por fazer testes em paÃses pobres. "Mas sem o teste, aquelas crianças morreriam!" Na incansável análise custo-benefÃcio tão popular nos Estados Unidos, exportar desagradáveis testes clÃnicos para paÃses pobres faz sentido. "Acho que em geral é bom para as pessoas participar de testes clÃnicos", diz o diretor médico da FDA, Robert Temple. "Metade das pessoas recebe medicamentos ativos e melhor tratamento", diz ele. "A outra metade...[recebe] melhor tratamento".
Entretanto, oferecer o corpo à ciência não é o mesmo que dar um dia de trabalho numa fábrica. Mesmo o emprego superexplorado no sweatshop, seja como for, oferece benefÃcios palpáveis ao indivÃduo, ainda que magros: trabalho, um pequeno contracheque. O teste clÃnico não garante nada. Na escala da comunidade, os pesquisadores podem equilibrar os riscos e benefÃcios. Mas não há garantia de que um voluntário será mais beneficiado do que prejudicado num experimento (O fato de que existe uma incerteza, naturalmente, é parte da razão pela qual uma experiência é realizada).
"Eles têm mais disposição para ser cobaias"
O pré-requisito absoluto à procura ética sobre os seres humanos - como está codificado em inúmeros documentos, inclusive na Declaração de Helsinki, da Associação Médica Mundial e no Código de Nuremberg- pressupõe que os recrutados para a pesquisa sejam informados e consintam voluntariamente. A condição de voluntário significa que a pessoa pode entrar ou sair: não pode haver coerção, ainda que sutil - seja sob a forma de um pacote de compensações excessivamente generoso ou do acesso a cuidados médicos de outro modo inatingÃveis, para influenciar indevidamente a decisão potencial do voluntário de expor-se a um teste experimental (Quando ativistas contra a AIDS pediram que os pesquisadores garantissem tratamento por toda a vida para os voluntários que fossem infectados durante o teste de alguma vacinas, os pesquisadores argumentaram que tal exigência violaria o princÃpio do consentimento voluntário. O negócio ficaria bom demais: até gente não infectada poderia inscrever-se só para conseguir remédio de graça).
E ainda assim, um crescente conjunto de evidências sugere que os voluntários em paÃses em desenvolvimento não consentem espontaneamente em ser testados. Especialistas em bioética rastreiam o número de pessoas que se recusam a participar ou que desistem dos testes como uma espécie de indicador a posteriori. Nessas duas ocasiões, mostram que entendem que sua participação nos testes é voluntária. As taxas de recusa e desistência nos testes ocidentais podem atingir 40% ou mais. Mas, quando a Comissão Consultiva Nacional de Bioética da França realizou um estudo anônimo com os pesquisadores clÃnicos atuantes nos paÃses em desenvolvimento, 45% deles disseram que os voluntários nunca se recusavam a participar dos testes.
A grande velocidade de recrutamento nestes testes - três mil voluntários para um teste de vacina, em nove dias, ou mil e trezentas crianças para um teste, em 12 dias - sugere, do mesmo modo, que não há desistências ou recusas. Eram muito poucos, se é que havia, os que diziam "não".
Num estudo sobre a qualidade do consentimento de voluntários alistados em testes de prevenção contra o HIV, na Ãfrica do Sul, mais de 80% dos voluntários disseram que não sabiam que podiam desistir do teste se quisessem. Resultados similares foram obtidos num teste em Bangladesh [10]. Essa prova de coerção seria motivo para realizar poucos testes nessa população, mas está sendo usada para realizar mais testes. O fato de que os potenciais recrutados não dizem "não" é um aspecto vendável para as companhias de testes clÃnicos em atividade nos paÃses em desenvolvimento. De acordo com um artigo no Applied Clinical Trials, os voluntários russos "não faltam à s consultas, tomam todas as pÃlulas necessárias e só muito raramente voltam atrás. Os russos fazem o que os médicos mandam. Que fenômeno!". Uma história de Centro de Vigilância sobre Testes, na China notou, do mesmo modo, que "os chineses não estão completamente emancipados como nos EUA. Eles têm mais disposição para serem cobaias".
Agências de supervisão fecham os olhos para testes em paÃses pobres
A supervisão européia e norte-americana destes testes é mÃnima. Quando um fabricante de drogas decide lançar uma experiência clÃnica nos Estados Unidos ou na Europa, primeiro precisa alertar as autoridades reguladoras e enviar todos os dados pré-clÃnicos - dados de laboratório e de testes com animais, junto com planos detalhados de como planeja usar a droga experimentalmente em seres humanos. Dados de testes no exterior são aceitos pelas autoridades reguladoras norte-americanas e européias, mas nenhuma exige que os fabricantes de drogas alerte-as antes de iniciarem os experimentos no exterior. Para esses testes, a única exigência é que a Declaração de Helsinki ou regras locais que por acaso garantam mais proteção sejam observadas. Se falharem - e 90% das drogas que entram nos testes clÃnicos falham em obter a aprovação regulatória - e não forem usados para apoiar o lançamento no mercado, então não há de fato controle norte-americano ou europeu sobre os experimentos. Sem descrição em parte alguma, os testes que fracassam nos paÃses pobres simplesmente desaparecem sem deixar traços.
Nesse caso, a Declaração de Helsinki é suficiente? Poderia ser. O principal mecanismo de força da Declaração de Helsinki está nos comitês independentes - comitês de ética - que devem aprovar e supervisionar testes clÃnicos para assegurar que os direitos dos voluntários sejam protegidos. Seria ótimo se a infraestrutura ética e regulatória nesses paÃses estivesse à altura da tarefa. Mas há provas indicando que em pelo menos alguns desses paÃses, provavelmente não é assim. A Ãndia é um exemplo.
Funcionários do governo na Ãndia estão interessados na expansão dos testes clÃnicos, pois vêem uma possibilidade de lucro. Vários funcionários dizem que esperam expandir testes patrocinados pela indústria - de U$ 70 milhões para U$ 1 bilhão por ano. Eles instituÃram várias mudanças em suas regras para facilitar os testes clÃnicos. As drogas experimentais não precisam demonstrar nenhum "valor especial" para a Ãndia, como antes. E as companhias que investem em pesquisa e desenvolvimento gozam de isenções de impostos por 10 anos. A indústria dos testes clÃnicos é vista como um bom negócio para a Ãndia. De acordo com o Economic Times, o principal jornal de negócios do paÃs, "as oportunidades são grandes, as multinacionais estáo ávidas, as companhias da Ãndia estão querendo. Temos as competências, as pessoas e temos uma vantagem que a China não tem e provavelmente nunca terá. O melhor é que esse é um tipo de deslocalização contra a qual os trabalhadores americanos não estão inclinados a protestar."
O conflito de interesses dos reguladores do governo indiano não é insuperável. Uma possÃvel abordagem seria aumentar a supervisão sobre os voluntários de testes. Mas, ao contrário, em quase todas as áreas de prática e pesquisa médica da Ãndia existe uma clara lacuna de regulamentos.
Ãndia, o laboratório ideal: não há código de ética médica
O ensino médico é pouco regulamentado. Escolas de Medicina foram flagradas contratando professores falsos para tapear inspetores, vendendo matrÃculas e leiloando tÃtulos. Uma vez diplomados, os médicos, na Ãndia, não precisam demonstrar competência.
A prática clÃnica é insuficientemente normatizada. A Associação Médica Indiana não adota código de ética algum, de modo que quando três quartos dos médicos em Surat fugiram da cidade, durante um surto de peste - que poderia ser tratada por antibióticos se houvesse médicos para receitá-los -, as autoridades médicas nacionais ficaram em silêncio.
O mercado farmacêutico é notoriamente sub-regulamentado. Há cerca de 70 mil marcas de remédios disponÃveis, com apenas 600 inspetores. Em um estudo, descobriram-se cerca de 70 combinações de remédios ineficazes ou perigosas no mercado (continuam a ser vendidas sob mais de mil marcas diferentes). Vendem-se remédios para indicações mal definidas como "queda intelectual", "desajuste social" e "deterioração do comportamento". Uma pesquisa de uma revista, em 2003, descobriu que um em cada quatro dos remédios que estavam disponÃveis eram falsos ou abaixo dos padrões. Numa batida em 2003, na cidade de Patna, sete entre nove farmácias estavam operando sem licença. Pelo paÃs afora, receitas de remédios são rotineiramente conseguidas por cima do balcão.
No entanto, de acordo com o conhecido perito em drogas Chandra Gulhati, editor do Monthly Index of Medical Specialties in Ãndia, "mesmo que uma companhia faltosa seja apanhada com a boca na botija em atividades ilegais, é liberada, por razões melhor conhecidas pelos reguladores, com uma ligeira advertência".
De acordo com o principal bioeticista do paÃs, Amar Jesani, "não há cultura ética na profissão" na Ãndia. Foram necessárias três décadas, após a primeira formulação da idéia do consentimento informado - durante o julgamento dos médicos nazistas em Nuremberg nos anos 1940 -, para que os Estados Unidos lhe dessem força de lei. Levou mais duas décadas para que a instituição da pesquisa médica dos EUA incorporasse os novos padrões em seu licenciamento, ensino e práticas clÃnicas. Esse processo tinha que ser iniciado em paÃses como a Ãndia, onde em 2003, nenhuma escola de Medicina dava cursos de ética médica. Para supervisionar testes clÃnicos patrocinados pela indústria, comitês de ética são devidamente organizados, mas de acordo com o ativista da saúde Sandhya Srinivasan, eles não funcionam para proteger voluntários e sim para "possibilitar a divulgação".
Esterilizações involuntárias, doentes de lepra sem tratamento
Não é surpreendente que tenha havido uma série de escândalos na pesquisa e prática médica por todo o paÃs. Nos anos 1970, a quinacrina, remédio contra a malária, foi distribuÃdo para milhares de mulheres sem instrução, provocando-lhes a esterilização permanente. A droga tinha sido desaprovada para esse uso e muitas das mulheres disseram, posteriormente, que tinham sido enganadas para tomá-la. Nos anos 1980, um anticoncepcional injetável - já retirado do mercado - foi testado em aldeãs que declararam que "não faziam idéia de que estavam participando de um teste". Num experimento com a lepra, patrocinado pelo governo em 1991-1999, voluntários disseram que não sabiam que o teste era com placebo.
No fim dos anos 1990, pesquisadores do governo realizaram tratamento de 1100 mulheres analfabetas com lesões pré-cancerosas nas vértebras cervicais para estudar a progressão da doença. Mais tarde, descobriu-se que as pessoas não tinham sido informadas e não tinham dado consentimento. Em 2001, um pesquisador da Johns Hopkins foi apanhado testando uma droga anti-câncer experimental em pacientes com câncer no estado indiano do Kerala, antes da droga ter sido experimentada em animais. Em 2003, um remédio experimental contra câncer foi administrado em mais de 400 mulheres que procuravam aumentar sua fertilidade. A droga era tóxica para os embriões.
PaÃses ocidentais também tiveram suas próprias histórias de transgressões, e entre as mais infames delas está o estudo sobre a sÃfilis do Serviço de Saúde Pública norte-americano de Tuskegee. O tratamento para a sÃfilis foi negado a dezenas de negros pobres do Alabama rural. O estudo sobre sÃfilis, quando exposto, levou à s primeiras proteções legais a pessoas estudadas em pesquisas nos Estados Unidos, em 1974. Nenhum dos escândalos de pesquisas na Ãndia, por mais que tenham sido publicizados na imprensa, levou a qualquer proteção legal para os voluntários. Esses fatos não são novidade para os reguladores do FDA, que demonstram uma grande confiança na habilidade dos voluntários em se auto-proteger, oferecendo ou retirando seu próprio consentimento informado voluntário.
Uma prática que solapa a legitimidade da medicina ocidental
Contudo, testes clÃnicos realizados de forma não-ética fazem mais do que minar os direitos humanos: solapam a legitimidade da medicina ocidental, de modo mais geral. A crise de confiança entre muitas pessoas no mundo em desenvolvimento e a medicina estilo ocidental aprofunda-se diariamente. O espectro de uma explosão de testes clÃnicos secretos pouco controlados inflama tais reações. Muitos fabricantes de drogas e pesquisadores clÃnicos concordam que a coerção e a falta de informação são problemas óbvios, mas alegam que as grandes esperanças com a pesquisa biomédica compensam os riscos e sustentam que, se a regulamentação for exagerada, os testes clÃnicos e o ritmo da inovação médica vão se reduzir e mais pessoas vão morrer.
Esse argumento é fraco, mas comum e poderoso. Pode ser verdade que a qualidade do atendimento nos testes clÃnicos seja freqüentemente superior ao tratamento normal e que os médicos encarregados dos ensaios tenham acesso à mais recente tecnologia, instrumentos e recursos que eles podem destinar ao cuidado dos pacientes. Esses são benefÃcios concretos dos testes clÃnicos. Mas os dados em si não podem significam automaticamente progresso da medicina (qualquer um que tenha visto as mais modernas vacinas apodrecendo em almoxarifados tropicais pode confirmar). O progresso da medicina requer a implementação da pesquisa, não apenas testes, e isso exige que governos, programas de saúde, pacientes e muitos outros atores tenham de fato algo a ver com os dados.
DevÃamos exigir que os voluntários pelo menos tivessem acesso aos métodos comprovados nos seus testes, não apenas num futuro hipotético, mas aqui e agora. Com excessiva freqüência, novas drogas desenvolvidas com experimentos em habitantes dos paÃses pobres não são licenciadas para uso nesses paÃses, têm preços proibitivos, ou não são utilizáveis porque a droga não é importante de um ponto de vista clÃnico. PrecisarÃamos exigir, também, alguma forma de confirmação ou validação para que o consentimento informado fosse de fato informado e voluntário.
Tais medidas poderiam acabar com alguns testes. Mas como disse o bioético Jonathan Moreno, seria parte do preço que pagamos para reconhecer que há uma diferença entre um rato de laboratório - que não precisa ser consultado se quer participar de um experimento - e um ser humano.
Tradução: Betty Almeida
artigo de LE Monde Diplomatique