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AIDS NA ÃNDIA
27/06/2004 - Revista Veja
A tragédia do preconceito
O mapa da aids aponta como a região mais crÃtica aquela que abriga os paÃses africanos localizados abaixo do Deserto do Saara. Nela se concentram 70% dos 40 milhões de casos de contaminação pelo vÃrus HIV no mundo e encontra-se o paÃs com o maior número deles, a Ãfrica do Sul. Nos últimos meses, porém, os organismos internacionais que se dedicam a monitorar a doença e a buscar soluções para erradicá-la entraram em alerta com a situação na Ãsia, e mais especificamente na Ãndia. Segunda nação mais populosa do planeta, com mais de 1 bilhão de habitantes, a Ãndia vive sobre uma bomba-relógio no que diz respeito à saúde pública â a epidemia do vÃrus HIV encontra-se fora de controle, as medidas do governo para reverter a situação são tÃmidas e, para piorar, esbarram na miséria, na ignorância e no preconceito da maioria da população. Como resultado, a ONU prevê que já no ano que vem a Ãndia ocupará o primeiro posto entre os paÃses com o maior número de pessoas contaminadas pelo vÃrus. Mantida a situação atual, no fim da década a Ãndia terá 25 milhões de habitantes soropositivos â uma tragédia de proporções nunca vistas.
Apesar de a economia indiana crescer a uma média de 6% ao ano, o dobro do ritmo mundial, mais de um terço da população (cerca de 350 milhões de pessoas) permanece na absoluta miséria, sobrevivendo com menos de 1 dólar por dia. A pobreza é um grande entrave ao combate à doença, como explica Ratna Gaekwad, coordenador de uma ONG indiana: "Como se pode falar sobre HIV e aids a alguém que não conhece os princÃpios básicos de higiene e saúde?" A situação se agrava porque o gasto do governo indiano com saúde pública é de apenas 1% do PIB (menos de 1 dólar por pessoa). Para efeito de comparação, o Brasil gasta quase 100 vezes mais do que isso. O grosso dos investimentos para conter a epidemia é feito por empresas privadas ou vem de doações de governos e fundações do exterior. A fundação de Bill Gates, dono da Microsoft e o homem mais rico do mundo, anunciou há pouco uma injeção de 200 milhões de dólares para combater a doença na Ãndia. "à o maior investimento que já fizemos em um único paÃs", disse Gates.
Recentemente, uma companhia de petróleo indiana transformou 4 000 postos de gasolina em centros de tratamento, uma rede de televisão começou a veicular uma campanha de esclarecimento e um banco está distribuindo preservativos gratuitamente. Sob pressão, o governo anunciou um projeto para fornecer remédios a portadores de HIV por preços mais baixos. Mas é muito pouco num paÃs no qual a própria ministra da Saúde, Sushma Swaraj, prefere enfatizar a abstinência sexual e a fidelidade como os melhores métodos para conter a epidemia e onde os portadores do vÃrus da aids são queimados vivos ou apedrejados até a morte pelos próprios familiares. Na Ãndia, empresas demitem sumariamente funcionários cujo teste de HIV dá resultado positivo.
Os costumes e as tradições indianas são um entrave ao combate à doença. As mulheres devem submissão total ao marido e pouquÃssimas têm coragem de exigir que ele use preservativo. Se um homem contrai o vÃrus numa relação fora do casamento, a sociedade costuma culpar a esposa por ser incapaz de satisfazê-lo, obrigando-o a procurar outras mulheres. A discriminação também é grande contra os filhos de pais portadores de HIV. Sejam eles próprios portadores ou não do vÃrus, são expulsos da escola e proibidos de conviver com outras crianças. Uma pesquisa feita recentemente pela Unaids, um organismo da ONU, dá uma idéia precisa de como os indianos encaram a aids. Segundo o estudo, 20% da população considera a doença uma punição divina e 36% acham que as pessoas infectadas deveriam se matar.
O mesmo tipo de ignorância perversa tem feito vÃtimas na Ãfrica. No ano passado, na Nigéria, os muçulmanos que dominam três provÃncias do norte do paÃs proibiram que as autoridades aplicassem nas crianças vacinas contra a poliomielite â doença que pode deixar a pessoa com defeitos fÃsicos pelo resto da vida e que está quase extinta no mundo inteiro. Baseados num suposto exame feito em seus próprios laboratórios, os muçulmanos alegaram que as vacinas eram o instrumento de um complô ocidental para causar infertilidade na população feminina e para disseminar o vÃrus da aids. A Organização Mundial de Saúde correu a testar as vacinas, comprovou sua qualidade e, afinal, em maio passado, conseguiu que a vacinação fosse retomada. Mas o estrago estava feito. Segundo a OMS, em 2004, até agora já foram registrados cinco vezes mais casos de crianças infectadas pela poliomielite na Ãfrica do que no mesmo perÃodo em 2003. Pior ainda: a doença se espalhou por mais uma dezena de paÃses do continente, para onde emigraram crianças do norte da Nigéria. à o tipo de desgraça que ocorre quando a superstição vence a ciência.