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ENTREVISTA COM DAVID HO

15/12/2003 - BBCBrasil.com

Aids pode levar países populosos à catástrofe

O médico americano, descendente de tailandês, David Ho mal tinha saído da faculdade de Medicina quando se deparou com os primeiros casos de Aids em Los Angeles, em 1981.
Intrigado pela doença que destruía rapidamente todo o sistema de defesa do organismo das vítimas, Ho começou a trabalhar com Aids e teve um papel fundamental na descoberta dos inibidores de protease, que hoje fazem parte do coquetel usado contra a doença.
Atualmente, Ho realiza trabalhos importantes relacionados à origem do HIV e no desenvolvimento de novos medicamentos e criação de vacinas contra o vírus no Centro de Pesquisas de Aids Aaron Diamond, em Nova York.
O médico também se interessa pela demografia da Aids e alerta: a epidemia pode ganhar dimensões catastróficas caso não seja controlada logo principalmente nos países extremamente populosos como China, Índia, Nigéria e Rússia.

BBC – Por que os Estados Unidos e a África se tornaram o epicentro da epidemia de Aids?

David Ho - Eu acho que a epidemia que conhecemos vinha crescendo lentamente na África já há algumas décadas. O que a fez emergir no continente foi o fato de vírus semelhantes ao HIV existirem em outras espécies de primatas, inlcuindo o chimpanzé. Agora entendemos que essa é a primeira fonte da epidemia. Baseados em evidências moleculares, acumuladas pelos anos, sabemos que o HIV “cruzou” espécies do chimpanzé para o ser humano há algumas décadas, espalhando-se de forma bastante lenta até, possivelmente os anos 70, quando o HIV foi levado aos Estados Unidos.
Ainda não sabemos claramente como isso aconteceu. Há várias teorias, sobre caribenhos que viajaram à África e levaram o vírus ao Caribe, infectando alguns americanos de passagem por lá, especialmente homossexuais. Como sexo seguro não era comum nos anos 70, o vírus se espalhou rapidamente dentro desse grupo.

BBC – Como o vírus foi se espalhando?

Ho – Nos anos 70 e início dos 80, apenas homossexuais tinham o vírus nas sociedades ocidentais. Mas tínhamos notícia de que o vírus também estava se espalhando entre a população heterossexual na África central. Inicialmente, o HIV não estava afetando o sul da África. Muito rapidamente, o HIV começou também a atingir os usuários de drogas injetáveis. Isso ocorreu na Europa, nos Estados Unidos e na Indochina. Já no fim dos anos 80, o HIV estava em vários países em diferentes níveis de prevalência: o problema se tornou grande na Tailândia e a epidemia começou a se espalhar pelo sul da África, a região hoje mais afetada pelo vírus seguida de Índia, China, leste da Europa, Rússia. Podemos dizer que o vírus se espalhou por todo o mundo.

BBC – Se não formos capazes de conter a epidemia do vírus, como o senhor vê o quadro mundial da Aids daqui para frente, daqui a 10 anos por exemplo?

Ho - Todos estão bastante preocupados com o fato de que a epidemia se espalhou muito, mesmo com os avanços científicos e médicos realizados. Hoje, é fato que conseguimos tratar o vírus relativamente bem, mas em algumas regiões os remédios só estão disponíveis para 5% da população, às vezes até menos. Então, o único jeito de termos um impacto grande na epidemia é espalhar informações, conhecimento sobre como as pessoas podem prevenir a infecção. E, claro, um outro avanço científico é desenvolver uma vacina.
A preocupação é maior com os países extremamente populosos como Índia, China, Nigéria, Etiópia e Rússia. Estima-se que em 2010 Índia e China juntas podem ter 40 milhões de casos. Isso seria uma catástrofe, é assustador caso se torne verdade.

BBC – Como e quando você se envolveu nas pesquisas de Aids?

Ho – Em 1981 eu era residente de medicina em Los Angeles, onde me deparei com os primeiros casos de Aids. Nós não sabíamos o que era aquela doença dramática que fazia as pessoas morrerem tão rápido. Sabíamos que o sistema imunológico dessas pessoas estava extremamente debilitado, mas não sabíamos o que causava aquilo. Meu interesse foi despertado, mas não sabia que ela se tornaria um problema tão grave de saúde pública.
Entre 1994 e 1995, estudamos muito os estragos que o HIV faz no organismo. Antes disso, achava-se que o vírus só fazia estragos no organismo cerca de 8, 10 anos após a infecção. Mas mostramos que os estragos existem desde o primeiro dia de infecção, que o HIV permanece ativo e se replicando no organismo, infectando e destruindo células do sistema imunológico. Hoje, sabemos que o HIV é muito mais poderoso do que imaginávamos. Mas isso pode ser controlado bem com os coquetéis. A partir desse conhecimento, começamos a desenvolver terapias contra a doença, bloqueando esse esquema assassino do vírus.

BBC - Por que é preciso combinar remédios para a terapia ser eficaz?

Ho – O vírus da Aids é muito inteligente, se for atacado de uma só maneira, ele sofre mutações para poder se replicar mais e jogar a droga para escanteio. Por isso é que formas resistentes do HIV emergem se o vírus for atacado apenas com um tipo de agente. A combinação de remédios é um jogo de probabilidade e exige cálculos simples, que até um adolescente faria. Com mais remédios, o vírus pode ser enganado e as probabilidades de ele sofrer mutações diminui muito.

BBC – Os inibidores de fusão surgiram agora no mercado, há outras classes em estudo. Qual será a linha de desenvolvimento de novos remédios daqui para frente?

Ho – Sem dúvida teremos que criar drogas que ataquem outros alvos no vírus. Hoje, podemos atacar as enzimas protease e transcriptase reversa do vírus, mas há outras possibilidades e estamos trabalhando nisso, no bloqueio dos receptores. Os inibidores de fusão, por exemplo, atuam bloqueando uma enzima na superfície do HIV que se agarra à célula infectada para contaminá-la. Mas essa droga ainda precisa ser injetada, não vem na forma oral. Na próxima década, avanços importantes devem acontecer nessa área.
Outra atuação de drogas é na integração, quando o vírus incorpora o seu DNA ao cromossomo da célula que ataca. Isso é mediado por uma enzima chama integrase, que também é um bom alvo em estudo.

BBC - O combate à Aids virou uma questão humanitária e o maior desafio é levar remédios aos infectados. O que o senhor acha que precisa acontecer para isso se tornar realidade?

Ho - O jeito de se combater a Aids com impacto é tratar as populações dos países mais pobres. Atualmente, há cerca de 40 milhões de pessoas vivendo com o HIV e não sendo tratadas, o que é uma tragédia. Tratar essas pessoas é um desafio enorme, e requer não só distribuição de medicamentos mas também investimentos na rede de saúde pública desses países, para que paciente e vírus sejam monitorados. É muito complicado, mas precisa ser feito.

BBC - Por que é tão difícil obter uma vacina contra a Aids?

Ho - Desenvolver uma vacina contra a Aids é difícil, mas extremamente importante. A resposta simples sobre por que é tão difícil recai no fato de todas as vacinas que protegem vírus existentes até hoje são restritas e usam vírus atenuados. Essa estratégia provavelmente funcionaria para o HIV, mas a pessoa poderia pegar Aids, o que é arriscado. Por isso, essa estratégia foi eliminada.
Há outras frentes de estudo, como o uso do SIV (vírus semelhante ao HIV que ataca primatas), mas alguns animais vacinados com pedaços desses vírus acabaram desenvolvendo Aids da mesma forma. Isso assustou todo o mundo porque as vacinas precisam ser dadas para pessoas saudáveis. Outra frente de pesquisa foi usar pedaços da proteína do HIV, em uma técnica semelhante à que criou a vacina da hepatite B, mas os resultados também não são satisfatórios.
Uma esperança agora vem surgindo envolve o estudo de substâncias produzidas pelas próprias células T (do sistema imunológico) para impedir a contaminação do vírus. Mas para isso funcionar novos avanços técnicos poderão ser obtidos.

BBC - O senhor vem trabalhando na China, para desenvolver uma vacina. Em que estágio ele está?

Ho - Nós estamos lá há cerca de cinco anos, testando em animais uma combinação de várias vacinas, que estão mostrando algum progresso, com animais apresentando algum tipo de resposta imunológica ao HIV. Dentro de alguns meses, podemos começar a testá-las em seres humanos. Mas testar vacinas é muito mais complicado do que remédios.
Logo que a epidemia surgiu, há mais de 20 anos, achávamos que a vacina apareceria mais rápida, o que não aconteceu. Agora, tivemos que reajustar os nossos objetivos e estamos olhando para qualquer coisa que possa ajudar frear a epidemia. Não estamos mais tão esperançosos que uma vacina proteja 100% o risco de infecção, mas imunizações e terapias que, combinadas, podem ajudar.