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AIDS, A CAMISINHA E A IGREJA
09/12/2003 - O GLOBO
Igreja erra na questão da Aids, diz governo
O Programa Nacional de Aids do Ministério da Saúde rompeu ontem o silêncio que vinha mantendo e condenou duramente a postura da Igreja Católica em relação à polÃtica de prevenção à Aids. Em nota oficial, o programa afirma que âa Igreja está errada ao insistir que o preservativo não protege e pode estar cometendo mais um crime contra a Humanidadeâ.
No fim do mês passado, a Arquidiocese do Rio entrou com uma representação no Ministério Público Estadual pedindo a instauração de um inquérito civil para impedir a veiculação do vÃdeo âPecado é não usarâ â feito por ONGs em resposta à posição da Igreja, que não aceita a camisinha. A Arquidiocese pede ainda que o Ministério Público apure se as entidades de prevenção à Aids estariam informando à população âquanto aos riscos de contaminação e de falhas dos métodos (de prevenção) utilizadosâ.
â TÃnhamos optado por não polemizar com a Igreja â explicou ao GLOBO o coordenador do Programa de Aids, Alexandre Grangeiro. â Mas se agora a Igreja está fazendo uma campanha pública, temos que garantir o direito da sociedade de discutir o tema de forma democrática e esclarecer a população.
A carta do Programa de Aids foi enviada na sexta-feira ao Ministério Público do Rio, que está analisando o pedido da Igreja e ainda não se pronunciou sobre a abertura de um inquérito. No texto, o ministério defende a exibição do vÃdeo, lembrando que a Constituição assegura âa livre manifestação do pensamentoâ.
â Vivemos num paÃs democrático â lembrou Grangeiro. â Se a Igreja lança o debate da prevenção do ponto de vista dogmático, está chamando a sociedade para discutir a questão. Portanto, não cabe utilizar instrumentos jurÃdicos para censurar o debate. E o vÃdeo das ONGs se insere no contexto da discussão.
Igreja erra ao questionar verdades cientÃficas, diz texto
O vÃdeo, exibido no Fantástico em 9 de novembro, provocou a ira dos religiosos ao relacionar a postura da Igreja de condenação do preservativo a seu posicionamento na Inquisição e no nazismo. O vÃdeo questiona: âQuanto tempo vai levar para que a Igreja peça perdão pelas vÃtimas da Aids?â.
Segundo Grangeiro, a carta também tem por objetivo esclarecer a população. O texto sustenta que a Igreja erra ao lançar dúvidas sobre verdades cientÃficas e, dessa forma, põe em risco a vida de pessoas. A Igreja defende a abstinência e a fidelidade como forma de prevenção à Aids e vem divulgando comunicados questionando a eficácia da camisinha.
â Diante de uma epidemia não há espaço para se discutir a adoção de estratégias que sabidamente não são mais eficazes â disse Grangeiro. â Cada vez que gastamos tempo com uma discussão ultrapassada, significa que mais pessoas estão morrendo. Nesse sentido é um equÃvoco da Igreja.
Grangeiro afirmou que não se trata de discutir a opção por fidelidade ou abstinência em âmbito pessoal:
â Mas não podemos adotar isso como polÃtica pública, até porque desrespeitarÃamos a diversidade da sociedade â disse o coordenador. â Além disso, não fazemos campanhas de prevenção para quem não faz sexo, mas sim para quem faz.
Grangeiro disse que é importante garantir que o poder público continue oferecendo os meios de prevenção e não siga as orientações da Igreja:
â Minha preocupação é com o gestor público, o prefeito, o diretor da escola. Eles não podem deixar de fazer campanhas de prevenção.
O coordenador fez questão de frisar, entretanto, a importância dos programas da Pastoral da Aids no combate à epidemia. Representantes da Igreja procurados pelo GLOBO não foram encontrados.
CARTA ABERTA - 08/12/2003
Posição do Programa Nacional de DST e Aids frente à proibição de divulgação de campanha da Sociedade Civil
O Programa Nacional de Doenças Sexualmente TransmissÃveis e Aids do Ministério da Saúde vem a público defender o direito de divulgação do vÃdeo âPecado é não usarâ, que as organizações não governamentais engajadas no controle da epidemia de aids fizeram em resposta à posição da Igreja Católica contra o uso do preservativo.
Estamos em um paÃs democrático, democracia esta que parcela da própria Igreja ajudou a construir, com a coragem de religiosos como Dom Paulo Evaristo Arns e inúmeros outros. Temos uma Constituição que defende as liberdades fundamentais como direito inalienável. Entre eles, a livre manifestação do pensamento e a liberdade de credo. O Governo Brasileiro não discute os dogmas e valores morais e individuais de abstinência e fidelidade conjugal.
Entretanto, ressalta que estas estratégias são inadequadas enquanto polÃtica de saúde pública para a prevenção do HIV e outras Doenças Sexualmente TransmissÃveis. Seria um erro uma polÃtica pública baseada no respeito à universalidade, à diversidade e na realidade cultural da sociedade preconizar condutas que não são compartilhadas por todas as pessoas. Temos o dever e a responsabilidade de afirmar que o preservativo é a única maneira de prevenir o HIV entre as pessoas que têm vida sexual ativa. No Brasil, um contingente de 91 milhões de pessoas.
Respeitamos a Igreja Católica, reconhecemos a contribuição que ela tem dado na luta contra a aids no Brasil. Desde o inÃcio da epidemia, a Igreja acolheu e amparou os órfãos da aids; criou esquemas de ajuda aos moradores de rua; fundou creches e instituições para dar assistência aos portadores; criou, inclusive, a Pastoral da Aids.
No entanto, a Igreja erra quando, para fazer valer o seu ponto de vista teológico, lança dúvidas sobre verdades cientÃficas há muito comprovadas, pondo em risco a vida de pessoas que, por obediência religiosa, acabam se descuidando. Quando lidamos com vidas humanas não temos o direito de errar. Sabemos, também, que embora essa orientação venha do Vaticano, nem toda a Igreja Católica do Brasil a difunde. Prova disso é a decisão tomada em Itaici na reunião da cúpula da CNBB em 2000, quando o preservativo foi considerado, âdos males, o menorâ.
Democraticamente, não podemos ignorar a multiplicidade das orientações sexuais e nem deixar de respeitar o direito que as pessoas têm de manifestá-las e exercê-las. à papel do Estado garantir a saúde fÃsica de todos os cidadãos, e é papel das religiões tentar melhorar a saúde espiritual do Planeta. Mas não podemos mentir.
O preservativo é único meio de proteger a população do HIV e de outras doenças sexualmente transmissÃveis tão prejudiciais à saúde quanto o vÃrus da Aids: o HPV, por exemplo, que provoca 90% do câncer do colo do útero; as hepatites virais, que acometem mais de 15% da população e podem levar à morte; a sÃfilis congênita, que provoca o aborto ou a má formação do feto, apenas para citar as mais conhecidas. Colocar em dúvida esta eficácia, especialmente, instituições com a credibilidade da Igreja Católica é danoso para a saúde pública. Anos inteiros de trabalho e investimento de recursos públicos para promover uma prática mais segura entre as pessoas que têm vida sexual ativa ou que ainda vão iniciá-la escorrem pelo ralo com declarações como a do Cardeal Colombiano López Trujillo.
Quando as ONG que trabalham com aids no Brasil decidiram veicular o vÃdeo contestando a posição da Igreja sobre o uso do preservativo, elas entenderam que a Igreja estava mentindo e, portanto, teria que pedir perdão, mais cedo ou mais tarde, por mais este equÃvoco histórico. E usaram como argumento a própria posição do Vaticano em 14 de março de 2000, quando o Papa João Paulo II proferiu em Roma a Oração Universal e a Confissão das Culpas e Pedido de Perdão pelos crimes do passado.
Toda a imprensa divulgou, à época, que o Vaticano estava tentando encontrar um jeito de pedir perdão à humanidade e, ao mesmo tempo, redimir a Igreja dos crimes pelos quais era acusada: o de perseguição religiosa na Idade Média; de violência e intolerância contra os povos pagãos do Novo Mundo; de omissão durante a ascensão de Hitler, que culminou com o holocausto. São essas as citações que o vÃdeo faz, baseando-se nas reportagens da época.
De fato, no Dia do Perdão, o Papa não se referiu à Igreja Católica em suas orações, mas a âhomens da Igreja que, em nome da fé e da moral, à s vezes lançaram mão de métodos não evangélicos no cumprimento da obrigação de defender a verdadeâ. Com base neste dispositivo, a Arquidiocese do Rio de Janeiro, fundamenta a argumentação de que é uma injúria associar a Igreja aos momentos históricos relatados no vÃdeo. Ora, se o responsável pela polÃtica de aids em um paÃs, em nome de suas convicções morais e religiosas, decidisse parar de promover o uso do preservativo e provocasse, com essa atitude, um grande aumento do número de transmissões do HIV e a morte de milhares de pessoas, quem seria acusado da irresponsabilidade? Apenas ele, como pessoa, ou todo o governo que ele representa e que permitiu que ele tomasse tal atitude?
à essa mensagem que o vÃdeo quis transmitir, no direito que as ONG têm â elas também parceiras importantÃssimas do governo na luta contra a aids no Brasil e no mundo â de fazer o contraponto cientÃfico a dogmas religiosos que podem por em perigo toda a humanidade.
Prova disso é o comportamento de lÃderes do continente Africano, onde alguns, até há poucos meses afirmavam, peremptoriamente, que o HIV não existe e que a aids é uma doença social, não de transmissão sexual. A Ãfrica, hoje, por essa posição anti-cientÃfica, é um continente ameaçado de extinção, com mais de 30% da população infectada pelo vÃrus. O continente Africano está aà para lembrar-nos de que não temos tempo para errar.
Portanto, é preciso cautela ao defender idéias. A Igreja está errada ao insistir que o preservativo não protege, e pode estar cometendo mais um crime contra a humanidade.
Vale lembrar que a própria Comissão Teológica Internacional, que redigiu o documento que justificava a necessidade que a Igreja tinha de pedir perdão à humanidade pelos erros do passado, alertou: âA Igreja é uma sociedade viva que atravessa os séculos. A sua memória não é apenas constituÃda pela tradição que remonta aos Apóstolos, normativa para a sua fé e a sua própria vida, mas é também rica na variedade de experiências históricas, positivas ou negativas, que ela viveu. O passado da Igreja estrutura em larga medida o seu presente. (Pág. 5).
E o próprio Papa João Paulo II acrescentou: âUm sério exame de consciência foi desejado por numerosos cardeais e bispos, principalmente sobre a Igreja de hoje. No limiar do novo milênio, os cristãos devem por-se humildemente diante do Senhor, interrogando-se sobre as responsabilidades que lhes cabem também nos males do nosso tempoâ (TMA36, pág. 22 do documento, grifo dos próprios redatores).
Programa Nacional de DST/Aids
Ministério da Saúde
RELEASE DO LANÃAMENO DO VÃDEO
ONGS/AIDS LANÃAM CAMPANHA NACIONAL CONTRA A POSTURA DA IGREJA CATÃLICA
A polêmica plantada pelo Cardeal colombiano Alfonso Lopez Trujillo, que pede uma campanha para questionar a eficácia do preservativo como medida de precaução contra a Aids, traz a cada dia mais reações indignadas.
Organizações de luta contra a Aids de todo o Brasil vão lançar em novembro, nas 27 capitais, a campanha nacional "Pecado é não usar". O slogan é uma referência à condenação do uso da camisinha pela Igreja Católica. Reunidas na tarde desta terça-feira no Rio de Janeiro, 32 organizações não-governamentais de prevenção e assistência da Aids traçaram a estratégia da campanha. Nesse processo está incluÃda a divulgação do vÃdeo "Perdão", com crÃticas à Igreja, cartazes e cartões postais. Os atos públicos nos estados e no Distrito Federal serão promovidos diante de catedrais metropolitanas. Telões devem exibir o vÃdeo de 10 em 10 minutos.
O VÃdeo
Criado por Flavio Waiteman e produzido pela Lux Filmes, de São Paulo, o vÃdeo "Perdão" tem um minuto de fortes imagens e traz apenas quatro frases: "Depois de séculos, a Igreja pediu perdão pela Inquisição"; "Depois de décadas, a Igreja pediu perdão aos judeus por ter se calado frente ao nazismo"; "Quanto tempo vai levar para a Igreja pedir perdão pelas vÃtimas da Aids?" A última cena mostra uma camisinha e a frase-slogan da campanha: "Pecado é não usar". Imagens de celas da inquisição, de campos de concentração, de Hitler e de vÃtimas da Aids ilustram o filme. "Sobre vários erros a Igreja voltou atrás, mas no caso da camisinha continua na sua intolerância medieval", disse Luiz Mott, presidente do Grupo Gay da Bahia, que participou do ato.
O Ato
Depois do encontro no Grande Hotel São Francisco, Centro do Rio, representantes das 32 ONGs promoveram uma manifestação simbólica diante da Igreja da Candelária, antecipando o lançamento nacional da campanha. Durante o protesto, foram distribuÃdos 3 mil preservativos masculinos e 100 femininos.
O vÃdeo "Perdão" é assinado pela ONG de profissionais do sexo Davida, do Rio de Janeiro, pelo Fórum de ONG/Aids de São Paulo, pela Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids (RNP+) e pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). A Articulação Nacional de Luta contra a Aids, que reúne mais de 500 ONGs/Aids de todo o paÃs, apóia a campanha.