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VACINAS

08/10/2003 - El País

A luta para encontrar uma vacina na Ãfrica

"Já perdi amigos demais, muitos companheiros de armas; gastei um tempão visitando-os quando estavam doentes nos hospitais e paguei uma boa quantia para organizar seus enterros, por culpa da Aids. Por isso me inscrevi num teste para encontrar a vacina." A linguagem de Paul Wetaka, um ugandês de 36 anos, é deliberadamente marcial. Sua vida é dedicada ao combate. Profissionalmente é soldado, membro da Guarda Presidencial de seu país. Mas onde gasta mais energia é na luta contra a Aids. "Para me inscrever para receber o teste da vacina não precisei ter muito valor. Nos propuseram no quartel, e só tive de dizer sim."
A escolha de Uganda para o primeiro teste é justificada. O país é considerado a zona zero da Aids, o lugar de onde o vírus da imunodeficiência humana, o HIV, que causa a doença, se estendeu e onde primeiro mostrou sua capacidade de devastação. Hoje Uganda conseguiu conter o avanço da epidemia, mas o continente africano ainda é sua principal vítima, sobretudo os países subsaarianos.
Segundo a Agência da ONU para a Aids (Onusida), vivem no continente 70% dos 42 milhões de pessoas infectadas no mundo. Cerca de 3 milhões de menores africanos são portadores do vírus, e mais de 1.500 morrem diariamente em conseqüência dele. A cada ano ocorrem mais de 3,5 milhões de novas transmissões de HIV na África. Nos países do sul, um em cada quatro adultos está infectado pelo vírus. "Todos estamos infectados ou afetados", resumiu Charity Ngilu, ministra da Saúde do Quênia, durante a inauguração da 13ª Conferência Internacional sobre Aids e outras Doenças Sexualmente Transmissíveis na África, em Nairóbi na semana passada.
Isso foi há sete anos, e Wetaka foi um dos 35 voluntários que testaram se a vacina era segura (o que se conhece como fase 1 dos testes clínicos). Nenhuma das cobaias humanas sofreu reações adversas, e o teste seguiu adiante. Este ano soube-se que aquela tentativa, que usava um vírus de aves (canarypox) como vetor para introduzir genes do HIV em seres humanos e provocar sua reação imunológica, não protegia contra a transmissão do vírus da Aids. Mas Wetaka se inoculou o que chama de vírus do ativismo, e viaja por todo o mundo explicando sua experiência (a conversa com ele ocorreu em Nairóbi durante a conferência).
O fracasso daquele teste não desanima Wetaka. "Graças a ele aprendemos muito", afirma. A primeira lição é que é possível fazer testes clínicos na África, que se pode conseguir que os voluntários participem e mantenham o compromisso. Do mesmo modo, que se devem estabelecer claramente os direitos dos voluntários e o compromisso dos organizadores dos testes. E que na África existe um fator sem cujo apoio é impossível trabalhar - a comunidade.
"A comunidade é um elemento chave", indica o dr. Job Bwayo, da Iniciativa Queniana para uma Vacina contra Aids (Kavi, na sigla em inglês). "Não basta ter uma droga; é preciso contar com os líderes das comunidades para garantir que os voluntários compareçam e que todo o grupo (familiares, amigos, companheiros de estudo ou de trabalho) entenda o que se está fazendo", explica.
Para isso, a equipe da Kavi, que conta com uma pequena clínica na Universidade de Nairóbi, dedica duas pessoas em tempo integral. São as conselheiras, espécie de trabalhadoras sociais que percorrem os bairros e as aldeias explicando o que fazem e como é importante contar com voluntários para os testes atuais e futuros.

Requisitos simples
Por enquanto Bwayo e sua equipe trabalham em um teste de fase 1. Os requisitos para participar são simples. Basta não estar infectado pelo HIV, não manter práticas de risco e não estar grávida. Também é preciso submeter-se ao controle durante cerca de 18 meses.
"Os candidatos recebem uma formação de mais de um mês", indica uma das conselheiras, Sabina Wakasiaka. "É preciso explicar bem que nesta fase não estamos testando se a vacina protege, mas somente se é inócua. Eles também são informados sobre seus direitos", acrescenta. "No final passam por um exame com 20 perguntas. Se não acertarem mais de 13 terão de repetir o processo de formação", salienta Wakasiaka.
Entre os direitos dos voluntários está o de receber tratamento médico caso adoeçam, incluindo os retrovirais contra o HIV, se necessário. "Isso se consegue graças à ajuda de organizações como a Iavi (Iniciativa Internacional para uma Vacina contra a Aids), que garantem o apoio econômico de que precisamos", afirma Bwayo. "Mas não dizemos isso aos voluntários no início, para evitar que a promessa de tratamento médico gratuito funcione como um atrativo de recrutamento", explica Wakasiaka com um sorriso.
"Quando me recrutaram não se fazia nada disso", afirma Wetaka. "Tive de explicar aos meus companheiros, a minha mulher e minha família o que estava fazendo. Além disso, como me viam entrar na mesma clínica em que os doentes eram tratados, no início as pessoas perguntavam se eu também tinha Aids", salienta.
"Nada disso ocorre hoje. Quando disse a minha namorada e a minha família que estava participando de um teste, ficaram céticos no início. Mas logo aceitaram sem problemas", indica John, um estudante de medicina de 24 anos que participa do teste da Kavi.
Mas as palavras de John não escondem que na África, assim como no resto do mundo, Aids é uma palavra maldita. O medo do estigma associado à enfermidade impede que John se deixe fotografar ou dê seu verdadeiro nome. Não adianta insistir que é para um jornal espanhol e que será muito improvável que alguém o reconheça no Quênia.
Realizar os testes na África oferece suas vantagens. Em primeiro lugar se garante que se o teste tiver êxito a vacina servirá para o tipo de vírus predominante no continente, onde é mais necessário (há diversas linhagens espalhadas por zonas geográficas diferentes). Além disso, depois dos testes da fase 1 é preciso começar as provas com grupos maiores e incluir nelas as pessoas que têm práticas de risco, como relações sexuais sem proteção. E aqui novamente as comunidades serão um elemento decisivo.
O trabalho permite colocar as bases para garantir a distribuição de uma vacina quando for descoberta. "Não podemos permitir que demore 20 anos para chegar à África, como ocorreu com outras vacinas", afirma Seth Berkley, presidente da Iavi. Mas ainda há muito a fazer. Segundo a contagem da Iavi, apenas seis vacinas estão sendo testadas na África (quatro delas com o patrocínio da organização). Todas estão na fase 1, portanto faltam anos para que sejam comercializadas. "Esta é nossa oportunidade de ajudar", acrescenta John.

Desinteresse dos países ricos
"A única solução contra uma epidemia como a Aids é encontrar uma vacina. O acesso aos medicamentos é um passo, mas não resolve o problema em longo prazo." Essa é a premissa de Berkley, presidente da Iavi. "Mas descobrir a vacina é um assunto político. É preciso que os países ricos se envolvam. E parece que não lhes interessa. Meu papel é estimular e fazer que as pessoas se comprometam. É necessário que acreditem que é possível", afirma Berkley.
Esse ativista, que nasceu em Nova York há 46 anos, trabalha desde 1994 em busca do remédio definitivo contra a doença. Ele conhece o problema em primeira mão. Antes de fundar a Iavi foi chefe do Serviço de Epidemiologia de Uganda, um dos países mais afetados pelo HIV.
Fruto de suas campanhas, a organização conta com a ajuda de entidades como as fundações Rockefeller e Bill e Melinda Gates, e também com a assessoria ou o apoio econômico de organismos oficiais do Brasil, Canadá, Holanda, Reino Unido e Estados Unidos, entre outros. Nos últimos anos a organização manteve contatos com parlamentares espanhóis (o último há algumas semanas com o conselheiro de Assuntos Sociais do governo basco, Javier Madrazo). "Até hoje as gestões não deram frutos. Na Espanha contamos apenas com a colaboração do Grupo de Trabalho sobre Tratamentos", acrescenta Frans van dem Boom, diretor para a Europa da organização.
Diante da crise mundial que representa a Aids, Berkley é partidário de atuar em todas as frentes ao mesmo tempo. "Não podemos esquecer a vacina para nos concentrarmos em retrovirais. É preciso trabalhar simultaneamente em pesquisa, na fabricação e no estabelecimento de redes para os testes e a distribuição de uma vacina."
O objetivo é trabalhar em paralelo, "como os grandes computadores", explica Berkley. Por isso a Iavi trabalha em diversas partes do mundo com 16 testes de vacinas diferentes. "Experimentamos ao mesmo tempo diferentes doses, intervalos variáveis e moléculas. Se pudéssemos trabalhar 24 horas por dia, sete dias por semana, e tivéssemos verbas para isso, poderíamos ter um resultado em três anos", ele afirma com convicção.